CAPÍTULO
3
Eu sabia que aquela não era uma simples festa
Enfim o dia da festa chegou. A minha falta de animação
inicial havia se convertido em total ansiedade, afinal, foi por causa da
insistência de minha mãe em comemorar meu aniversário em alto estilo que eu
estava namorando o garoto mais cobiçado da escola _ apesar de não ter mais
muita certeza de que queria continuar com ele _ e isso havia melhorado meu relacionamento
com todos por lá. Também por causa da festa eu não usava mais meus horríveis
óculos de tartaruga e estava mais popular do que nunca na escola _embora essa
última parte ainda me deixasse meio confusa porque minha timidez continuava.
Eu me levantei ainda sonolenta, vesti um short branco
e uma camiseta de malha azul clara e amarrei uma fita branca nos cabelos.
Passei um batom levemente rosado e desci para a cozinha. Não havia ninguém em
casa, pelo menos eu não estava vendo.
_ Carol! _ minha mãe chamou do jardim. _ Venha ver
como a decoração ficou bonita.
Eu saí da cozinha e parei, surpresa com o que via. O
jardim havia sido totalmente transformado para a festa, havia uma enorme tenda
branca onde seria realizado o baile e, no centro, um palco para a apresentação
do Poeira (sim, era verdade, eles iriam se apresentar na minha festa),
luminárias japonesas enfeitavam a entrada da casa, formando uma alameda
iluminada e havia grandes arranjos cada um com cinco dúzias de rosas vermelhas
espalhados por todo o jardim; a um canto havia uma admirável mesa coberta com
uma toalha de damasco branco com um pedestal de três andares que serviria para
colocar o bolo que estava para chegar. Estava tudo tão bonito, nem parecia a
minha casa!
O mais interessante nisso tudo foi que quando fui me
deitar, na sexta-feira à noite, não havia nenhuma movimentação para a
transformação do jardim e no sábado quando me levantei estava tudo quase
pronto, com exceção de um ou dois detalhes que o pessoal do Buffet ainda estava
confeccionando. Como será que isso aconteceu?
No decorrer do dia, entre a movimentação de ir ao
salão de beleza, à manicure, escolher as joias que iria usar naquela noite e me
arrumar para receber os convidados, esse detalhe acabou passando despercebido,
mas, eu precisava me lembrar de perguntar à minha mãe quem era esse pessoal que
arrumava tudo tão rápido e sem incomodar a ninguém.
Mais tarde, no salão, Jacó conseguiu fazer um
verdadeiro milagre em mim. Puxou a parte da frente dos meus cabelos para cima,
deixando cair alguns fios sobre a minha testa e fez enormes cachos escorregarem
por sobre meus ombros. Para finalizar, ele borrifou um “spray” com brilho que
fazia os fios cintilarem a cada movimento da minha cabeça. Enfim, eu tinha o
cabelo dos meus sonhos e usava um vestido verde musgo que combinou muito bem
com os meus olhos, drapeado no corpete e com uma ampla saia bem vaporosa.
Lá pelas nove horas os primeiros convidados começaram
a chegar. Bernardo já estava lá ao meu lado me ajudando a recebê-los.
Conforme minha mãe falou, todos os velhos parentes que
eu não via desde menininha vieram: Tia Rovena, tio George, tia Samanta, tia
Helena, tio Zacarias, os primos Magno, Fabíola, Alícia, Hannah, Gisela, Ortiz,
Alex e muitos outros parentes que eu não me lembro dos nomes.
Os colegas da escola também estavam chegando: Os
inseparáveis Leandro e Gustavo, Clara, Silvia, Cláudia, Sara, Marina e Sissi,
acompanhada de sua mãe e do mais novo namorado dela.
Quando eu pensei que não faltava mais ninguém, chegou
uma senhora idosa de cabelos brancos e porte elegante, envergando um vestido
preto e pérolas de duas voltas no pescoço. Devia ser alguém muito importante,
porque todos os meus parentes, incluindo meu pai e minha mãe, foram recebê-la.
_ Carol! _ minha mãe chamou _ Quero que conheça uma
pessoa especial. _ ela me levou pela mão até aquela senhora que parecia
envolvida numa aura de poder.
E poder ela tinha mesmo porque quando ela estendeu a
mão e tocou a minha eu senti como se uma corrente elétrica estivesse passando
por todo o meu corpo enquanto minha mãe dizia com respeito:
_ Essa senhora é a pessoa mais importante que você
jamais conheceu. Seu nome é Ambrosina, lembre-se desse nome!
Eu curvei a cabeça, numa reverência muda que,
inexplicavelmente, senti que deveria fazer à majestosa senhora acabara de adentrar
em nossa casa.
Eu
pensei que a D. Ambrosina fosse a última pessoa a chegar, mas, depois dela, um
casal de extrema formosura entrou acompanhado de um rapaz que deveria ter
dezoito ou dezenove anos e era tão bonito quanto os pais.
Olhei melhor. Bonito? Queísso! Ele era belíssimo:
Rosto juvenil, traços finos e aparência angelical. A pele era macia e delicada
e seus olhos refletiam a beleza da noite sem luar. Caraca! Era ele! O garoto dos meus sonhos, aquele
que havia me beijado daqueeeela maneira! Ah, não! Aquilo não estava
acontecendo! Eu comecei a tremer e a suar frio. Cadê o algodão-doce?
_Você está bem? _ Bernardo perguntou, mas, eu nem tive
tempo de responder, porque minha mãe me puxou pela mão.
_ Ah! Robert Tatcher e a família! Venha, vamos
recebê-los! _ ela estava completamente excitada.
Tatcher? Eu nunca havia ouvido falar que houvesse
alguém com esse sobrenome em Pitangui. Seriam ingleses? Eles tinham o mesmo
sobrenome daquela mulher que a professora falou na aula de História
Contemporânea, a Dama de Ferro da Inglaterra, só que eu me esqueci como era o
primeiro nome dela, seria Margareth, talvez? Bem, isso não importava naquela
hora.
Como estava claro que nenhum doce gigante viria me
socorrer daquela situação absurda, eu soltei sem muita vontade a mão que
Bernardo segurava e fui receber aquela família tão cheia de graça e de encanto
e de quem eu nunca ouvira falar.
_ Carol, apresento-lhe Robert, Charlotte e Erick
Tatcher. _ Pelos nomes, eles eram mesmo estrangeiros. Charlotte era belíssima,
mas, Robert e Erick eram inumanamente belos.
_ Muito prazer!_ eu murmurei ao apertar a mão de
Charlotte e Robert, estranhando o fato de jamais tê-los visto antes. Quando
estendi a mão para Erick, ela estava molhada de suor e meu coração pulava. Ele
pareceu perceber, porque me puxou levemente com um sorriso zombador no olhar e
me deu um beijo no rosto, provocando em mim, do mesmo modo que antes, todas as
sensações daquele sonho.
Eu me afastei abruptamente e ele riu de novo. Caraca!
Como fui sonhar com Erick Tatcher sem nunca ter sabido da sua existência? E ele
parecia saber disso, era como se ele invadisse a minha mente e visse tudo o que
se passava dentro de mim.
Eu pedi licença e me afastei absorta em meus
pensamentos. Talvez eles morassem em outro país, e por essa razão eu nunca
ouvira falar deles, mas, isso não explicava o motivo de Erick ter invadido o
meu sonho. Eu não fazia a menor ideia de onde vinha aquela família, pois, eles
falavam um português perfeito, apesar do sobrenome inglês e da aparência de
estrangeiros.
Eu não conseguia parar de pensar em como Erick Tatcher
era estranhamente bonito e em como ele me olhava fixamente. Estava claro que
ele sabia que eu havia sonhado com ele. Será que ele também havia sonhado comigo?
_ “Deixe de ser boba!” _ eu falei pra mim mesma e
continuei olhando para aquele rosto de deus grego. Não é humanamente possível
alguém ser tão belo assim! Isso não é justo para com os outros homens. Bernardo
é muito bonito, mas, ele não chega nem aos pés de Erick!
Para me deixar ainda mais confusa, minha mãe me chamou
à parte e disse, num tom confidencial:
_ Minha filha, eu lhe peço, não estranhe _ ela
enfatizou bem a palavra não _ nada que vier a acontecer nesta noite, nem a
chegada e muito menos a saída dos convidados, aja naturalmente por mais
estranho que tudo possa lhe parecer.
Dizendo isso, ela me deixou de queixo caído e
desapareceu como se fosse fumaça.
Eu e Bernardo começamos a circular por entre os
convidados, conversando aqui e ali e vendo com curiosidade como todas as
garotas estavam eufóricas com a apresentação do Poeira.
Às dez horas em ponto, meu pai subiu ao palco e pediu
a atenção de todos para chamar a banda Poeira na Estrada. De onde eles saíram?
Eu não ouvi ninguém falar que eles haviam chegado, nem vi nenhum deles em
momento algum antes de papai chamá-los ao palco... Que coisa intrigante! Bem
que minha mãe me disse para não estranhar nada naquela noite... Aquele deveria
ser um dos fatos a que ela se referia...
As meninas gritaram, choraram, algumas ameaçaram
desmaiar... Eles cantaram algumas de suas melhores músicas, posaram com
gentileza para fotos ao lado de todas as garotas da escola e depois foram
embora, desaparecendo como fumaça também. Outra coisa extravagante!
O mais engraçado de tudo é que ninguém parecia estar
achando nada esquisito. Bernardo estava comigo o tempo todo e não percebia
(pelo menos era o que eu pensava) todas as coisas loucas que estavam
acontecendo. Isso era assustador!
Eu parei de pensar na esquisitice das coisas quando
Bernardo me puxou para dançar. Eu não queria, eu havia dito a ele que não sabia
dançar, mas, ele insistiu e eu fui com ele para o centro da pista deixando que
ele me levasse no compasso da música. Enquanto eu dançava com Bernardo, meus
olhos procuravam por Erick Tatcher. Eu o localizei recostado indolentemente em
uma pilastra, segurando uma taça e me olhando firmemente. Aquele olhar me
deixava tonta e meu coração começou a dar pinotes. Errei o passo e olhei para
Bernardo, num mudo pedido de desculpas.
_ Tudo bem, não faz mal. Você está se saindo muito
bem. _ ele disse me dando um beijo no alto da cabeça. Será que Erick havia
visto aquilo? Eu me senti ridícula
com esse pensamento.
Passado o pânico inicial, eu até gostei de ensaiar
alguns passos e dancei com praticamente todos os garotos da festa, menos com
Erick, que continuava a me olhar constantemente. Eu pensei em chamá-lo para
dançar, mas, acabei desistindo dessa ideia desvairada. Eu nem ao menos sabia
dançar, como eu iria chamá-lo? E se ele também não soubesse? Outra idiotice! É
claro que um garoto daqueles sabia dançar! E, supondo que eu resolvesse
chamá-lo, como é que eu iria falar: _ “Oi, eu sonhei com você, quer dançar
comigo?” _ Coisa ridícula!
Fiquei indecisa durante muito tempo ainda até que não
o vi mais. Fiquei aterrorizada com o sentimento de abandono que experimentei
quando ele desapareceu. Isso não podia estar acontecendo, eu mal o conhecia!
Continuei dançando, fingindo não perceber que Erick não estava mais lá, mas,
alguma coisa havia mudado dentro de mim e eu sabia o que era: Erick Tatcher
havia invadido a minha vida irremediavelmente.
O baile estava animadíssimo, mas, mais ou menos às
onze e meia, mais coisas estranhas começaram a acontecer. Meus convidados
começaram a se retirar, tomados de um sono repentino e todos falavam que já
estava muito tarde ao se despedirem de mim.
Não estava tarde e muito menos havia chegado o momento
verdadeiro do meu aniversário, pois, eu só completaria dezesseis anos no dia
seguinte. Eu pensei que após a meia-noite a festa estaria ainda melhor, que
cantariam os parabéns e que fôssemos festejar até o dia amanhecer, porém, as
pessoas começaram a ir embora (bem, algumas pessoas, porque meus tios e primos
não pareciam nem um pouco cansados, tampouco a D. Ambrosina ou a família de
Erick).
O que realmente
me causou estranheza foi Bernardo e Sissi irem embora porque, segundo eles, já
estava de madrugada e eu precisava descansar. Ainda faltavam quinze minutos
para a meia-noite! Que história era aquela de “já estava de madrugada”? Não
houve meio de fazê-los ficar e eu também não via nenhum de meus parentes com a
menor sombra de sono.
Quando quase todos os convidados haviam ido embora,
minha mãe convidou a restante das pessoas a entrar em casa. E foi aí que o meu
espanto foi maior: Nossa sala de visitas havia se transformado num enorme salão
(como?) em estilo vitoriano, com pé direito alto e magníficos lustres de
cristal no teto abaulado onde estrelas cintilavam e pareciam estar se
movimentando. Para aumentar o meu susto, à medida que as pessoas iam entrando,
as roupas de cada um iam se transformando em trajes de gala e quando eu olhei
para baixo, o meu vestido verde havia se transformado num modelo tomara que
caia de brocado marfim com folhas bordadas em ouro no tecido inteiro e com uma estupenda
saia rodada, salpicada de pequenas flores que pareciam de verdade. Minhas mãos
estavam cobertas por luvas de renda que chegavam acima do cotovelo e meu
cabelo, antes caído sobre meus ombros, estava preso num coque no alto da cabeça
e eu pude ver por um dos espelhos que havia no salão (de onde surgiram aqueles
espelhos?), que havia minúsculas pérolas em todo o penteado e que eu estava
usando uma gargantilha de pedras que pareciam imitação de diamantes _ pelo
menos eu achava que era imitação, não é possível que fossem diamantes de
verdade.
Sinto muito, não havia como não intrigar-me com aquilo
tudo, ainda que eu me lembrasse do tempo todo do pedido de mamãe. Parecia que
eu havia sido transportada ao século XIX. Um relógio antigo que eu também não
conhecia soou as badaladas da meia-noite e eu vi D. Ambrosina tomar lugar à
frente de todos. Os convidados que ficaram se reuniram em um semicírculo e
minha mãe me puxou para dentro, no meio do salão onde havia um caldeirão de
bronze cuspindo imensas labaredas de fogo.
Então eu vi o bolo de aniversário com dezesseis
velas acesas no meio da sala e os convidados sorridentes cantando parabéns com
entusiasmo. Quando pararam, minha mãe me levou para frente e eu apaguei todas
as velas com um sopro. "Não é agora que eu deveria fazer um pedido?"
Eu pensei atordoada, mas não disse nada. No aplauso que se seguiu, minha mãe
pegou minha mão e olhou para mim, séria agora.
_ Carol, _ ela falou solenemente _ nossos convidados
cantaram os parabéns não só pelo seu aniversário, mas, também porque esse é um
dia muito especial para nós, é o dia em que você tomará conhecimento da nossa
verdadeira natureza.
Antes que eu pudesse dizer alguma coisa ela continuou:
_ O que está para acontecer mudará para sempre a sua
vida. _ ela fez uma pausa para respirar _ Esse fogo que está ao seu lado é o
Fogo Sagrado que mantém acesa a nossa existência. Eu quero que você saiba que
nós somos todos bruxos, minha filha.
O quê? Bruxos? Caraca! Bruxas em Pitangui? Eu já tinha
ouvido falar de dragões em Pompéu e sempre ouvi rumores de bruxas, bem como vampiros, mas eu pensei que tudo
isso era apenas histórias para crianças. Nem em todos os meus pesadelos eu
poderia imaginar ouvir uma coisa dessas. Aquele pessoal todo era um bando de bruxos?
Então, onde estavam minha mãe e meu pai? O que eles haviam feito com a minha
família? E meus amigos? Todos já haviam ido embora, eu estava sozinha com essa
gente! Eles prepararam tudo!
Minha mãe, ou melhor, aquela bruxa que estava falando
comigo deve ter percebido o meu susto, porque colocou os braços ao redor de
mim, me amparando (ou me segurando para não fugir?) e continuou a falar:
_ Hoje é o dia em que o Poder chegará às suas mãos. Ao
completar dezesseis anos, estava previsto você receberia das mãos da Grande
Mestra Ambrosina todo o Poder que lhe pertence desde que você nasceu e que, por
motivos que lhe revelaremos em breve, lhe foram retirados, para o seu próprio
bem. Você também é uma bruxa!
_ Humpf! _ eu não consegui dizer nada e não preciso falar
que não havia nenhum algodão-doce a postos para me engolir e me salvar de tudo
aquilo.
Dizendo isso, ela me levou até Ambrosina. A sala
escureceu um pouco deixando-nos numa suave penumbra apenas suficientemente
clara para que eu pudesse ver as feições de cada um dos presentes.
Eu não consegui me calar mais:
_ Bruxa? Eu?
Caraca! Quer dizer então que, tipo, toda aquela história de Harry Potter,
Hogwarts, Lord Voldemort não é só ficção?
Ambrosina riu:
_ Sim, filha, você é uma bruxa muito poderosa desde
que nasceu. Seu poder teve de ser retirado de você ao vir ao mundo. Nós todos
sabíamos que você deveria receber o Grande Poder de volta quando completasse
dezesseis anos e é essa a razão de estamos todos aqui
_ Hã? Poderosa? _ eu ainda não sabia o que pensar daquela
insanidade toda. _ E essa história de eu ter perdido meu Poder? Por que isso
teve de ser devolvido exatamente agora, no meu aniversário de dezesseis anos?
E Ambrosina continuou:
_ Isso lhe será revelado no momento oportuno. Quanto a
Harry Potter e Hogwarts, tudo isso é ficção, mas, a autora escreveu muito bem
sobre nós. Agora, fique sossegada, Lord Voldemort não existe, pelo menos não do
jeito que você imagina.
Essa última fala da D. Ambrosina me assustou. Lord
Voldemort não existe... Do jeito que eu imagino ele não existe, mas...
Existiria um bruxo do mal? Foi isso que eu entendi da sua fala, mas tive medo
de perguntar.
D. Ambrosina estendeu suas mãos e pegou as minhas
entre as suas. Um choque elétrico percorreu todo o meu corpo enquanto ela
dizia:
_Ana Carolina Couto Jardim, receba pelas minhas mãos o
Poder que sempre lhe pertenceu. Use-o com Sabedoria e Prudência para defender
sua própria vida e para proteger toda a comunidade Bruxa.
Ao acabar de dizer essas palavras, ela colocou as mãos
sobre a minha cabeça e eu senti novamente uma onda elétrica me transpassando
todo o corpo, como minúsculos choques. Pequenos raios pareciam se desprender do
meu corpo, numa agitação oscilatória, bastante parecida com o movimento
“browniano” dos átomos que estudamos em Química.
Não havia varinha, nem palavras mágicas, não havia
poção que eu tivesse que beber, nem uma escola onde eu tivesse que estudar...
Teria apenas que receber das mãos abençoadas da D. Ambrosina, aquele Poder que
diziam que me pertencia e cujo tamanho eu não conhecia.
De um momento para o outro, eu me senti outra pessoa.
Os raios haviam parado de se desprender do meu corpo naquele movimento caótico,
tudo parecia normal, mas, EU estava diferente. As coisas faziam mais sentido,
eu via os fatos com mais clareza e podia sentir a atmosfera ao meu redor como
se a minha mente estivesse mais aberta. Eu olhei para os presentes que estavam
à minha volta formando um círculo. A luz do Fogo Sagrado refletia nos olhos de
cada um deles, em movimentos bruxuleantes.
De repente eu percebi que, tipo, TODAS as coisas
bizarras que aconteciam comigo eram exatamente porque EU era uma bruxa! A bola
parada no ar no dia em que Bernardo caiu, Sissi me ouvindo gritar quando eu
precisava dela e mais um montão de coisas das quais eu acho impossível me lembrar
agora, mas, sei que aconteceram e que foram muito extravagantes.
As pessoas a minha volta se aproximaram para me dar os
parabéns. Todos eram bruxos... Meu pai e minha mãe também... Aquela linda
família que chegou por último à festa... Meus tios e primos... E, se todos eles
sabiam da sua condição de bruxos, por que somente EU não sabia de nada? E por
que meu Poder me foi retirado ao nascer? E por que nós morávamos como uma
família normal, em uma cidade normal, meu pai tinha um emprego normal e tudo o
mais? E por que... E por que... Eram tantos os por quês...
Charlotte e Robert se aproximaram para me cumprimentar
e logo atrás deles vinha o belíssimo Erick, me encarando com seus olhos
escuros. Ele tinha os cabelos negros jogados descuidadamente sobre a testa
divinamente soberba, exatamente como eu me lembrava no meu sonho. Como no
sonho, aquele olhar me deixava desconcertada e eu não sabia dizer por quê.
Talvez fosse porque eu via neles uma espécie de ironia calada... Será que ele não
gostava de mim? Ou será que ele sabia que eu havia sonhado com um beijo
dele? Eu recomecei a suar frio e meu
coração voltou a dar pinotes.
Minha mãe se aproximou de mim junto com eles e,
enquanto eu recebia um beijo de Charlotte, ela colocou a mão sobre os ombros de
Erick. Pelo gesto eu percebi que ainda havia algo mais que eu não sabia e que,
muito provavelmente, eu não iria gostar nada.
_ Minha querida, Charlotte e Robert são grandes
amigos. E, embora você seja uma bruxa poderosíssima, ainda não sabe como fazer
as coisas e nem sabe como usar o Poder, por isso Erick ficará ao seu lado, será
seu guardião até você aprender a controlar todo o Poder que tem.
Eu levantei a cabeça a fim de olhar para Erick, pois, ele
era tão ou mais alto que Bernardo. Agora eu podia entender a causa daquele
sorriso irônico quando ele se aproximou de mim. Eu com uma babá! Era o que
faltava!
_ Hã... Mãe, eu preciso mesmo disso? Tipo... É claro
que não preciso de babá, né? _ Eu havia desistido de esperar socorro por parte
dos algodões-doces, então, o desespero transparecia em minha voz, deixando
Erick a sorrir ainda mais divertido.
_ Você não faz ideia do quanto você precisa da
presença constante de Erick. Ele é um bruxo influente e, apesar da sua pouca
idade, tem outras qualidades que nenhum de nós possui. É a pessoa ideal para
proteger você. Além do mais _ ela continuou _ pela sua idade, ele pode
acompanhá-la à escola sem levantar suspeitas!
“Oh! Não! Até na escola eu teria esse grude no meu
pé?” _ pensei. Eu não gostava disso e quanto mais furiosa eu ficava, mais ele
parecia se divertir com isso, parecendo também não gostar nem um pouco de mim.
_ Faremos tudo que pudermos para protegê-la, querida!
_ a linda Charlotte parecia sincera.
Quem disse que eu precisava de proteção? Pelo que pude
entender eu precisava de um professor para me ajudar a controlar meu Poder que,
diziam, era imenso. Eu não precisava de
alguém para me proteger! E, se é que eu realmente necessitava de proteção,
seria contra o quê? E de que valia todo esse meu Poder se eu não conseguia me proteger? Como eu defenderia a comunidade
bruxa, conforme Ambrosina havia dito antes, como eu defenderia minha vida e a
vida de outras pessoas, como eu faria o bem se eu não era capaz de cuidar da
minha própria proteção?
Abaixei a cabeça numa concordância muda e pedi
licença. Queria ficar um pouco sozinha. Eu precisava de um tempo para me
acostumar com a ideia de ser uma bruxa, se é que eu me acostumaria.
Saí para a escuridão da noite e me sentei em um dos
banquinhos colocados no jardim especialmente para a festa. Embora minha saia
rodada atrapalhasse um pouco, eu consegui me sentar de lado com os pés sobre o
banco, abraçando minhas próprias pernas.
Estava com meus pensamentos tão longe dali que não vi
quando Erick se aproximou de mim:
_ Será que a princesa da noite aceita a minha
companhia ou quer continuar sozinha na escuridão?_ ele tinha uma voz suave e
musical que não combinava com o olhar zombeteiro que ele sempre lançava para
mim.
O rosto helênico era absurdamente bonito. Porque será
que eu via ironia em tudo que vinha dele? Eu precisava parar de tremer toda vez
que ele chegasse perto de mim.
_ Por que eu preciso de proteção?
Minha pergunta brusca deve tê-lo assustado, pois, ele
engoliu seco antes de responder:
_ Não sei se eu posso falar com você sobre isso. _ ele
respondeu, cheio de mistério. _ Com certeza seus pais lhe dirão mais tarde
qualquer coisa a esse respeito. Tem algo a ver com uma profecia feita no dia do
seu nascimento._ ele se calou subitamente e praguejou baixinho, como se tivesse
falado alguma coisa que não devesse.
_ Foi por isso que meus pais se esconderam comigo aqui
nesta cidade?
_Hã... Bem, sim! Até você ter seu poder de volta. _
ele parecia relutante.
_ Que é exatamente agora, aos dezesseis anos! _ eu afirmei
ironicamente, pois aquilo tudo me parecia absurdo demais para ser levado com
seriedade.
_ É! _ Embora parecesse estar meio chateado consigo
mesmo por ter falado demais, Erick não parecia ver nenhum contrassenso ali!
_ Você disse que há uma profecia a meu respeito e que,
por causa disso, meus pais se esconderam comigo?
_Já contei tudo o que sabia sobre isso. _ ele
respondeu com impaciência, o cenho franzido, parecendo mais bonito agora que
estava nervoso comigo _ Quando chegar o momento seus pais vão colocar você a
par de tudo, fique sossegada.
Ele falava de um jeito gentil, diferente, pronunciando
bem as palavras, não era do jeito largado que meus colegas falavam. Seu sotaque era interessante, com uma inflexão ímpar e eu não consegui
distinguir de onde poderia ser (Inglês? Alemão? Russo?). O jeito perfeito com que ele falava era mais ou menos
como a minha mãe insistia para que eu falasse. Mesmo encantada com ele, eu
ataquei:
_ E vão esperar mais dezesseis anos? Até quando eu vou
permanecer na ignorância como uma idiota? _ eu rolei os olhos e soltei uma
risada que soou estranha.
Erick me olhou. Sua expressão estava inabalavelmente serena e eu não gostei do que vi em seus olhos. Comecei a
falar de maneira destrambelhada:
_ E... Sobre este... Novo mundo, hã, que estou
conhecendo agora... Quero dizer, tipo, bruxos e bruxas... Criaturas
sobrenaturais... Quem mais existe?
_ Ha, ha! O que você quer dizer com “quem mais
existe”?
Eu fervi de raiva, ele estava caçoando de mim.
_ Você sabe o que eu quero saber, Erick! Quais são as
criaturas sobrenaturais que existem?
Ele girou os olhos, demonstrando um misto de seriedade e loucura ao dizer:
_ Acho que você deveria pensar um pouco mais em quem
não existe, porque, pelo que sei, o mundo está cheio de todas as criaturas, se
você quer chamar assim, que você achava que não existia. Você não é uma delas?
_ É difícil para mim me acostumar com a ideia de ser
uma bruxa, eu achava que fadas e bruxas só existiam nas histórias...
Eu continuei, pensativa:
_ E sobre... Vampiros, lobisomens e outros monstros
tipo, centauros, sereias e outros?_ eu perguntei receosa da resposta.
_ Para a sua informação, bruxos, vampiros e lobisomens
não são monstros._ seu rosto era uma máscara de raiva e ele estava assustador _
E não há nada de sobrenatural nisso. O bem e o mal acontecem a toda hora no
mundo inteiro, também entre pessoas normais e não somente entre criaturas
misteriosas!
E ele continuou a falar freneticamente como se
quisesse convencer o mundo inteiro:
_ Nós não
ficamos por aí nos mostrando e é por isso que a maior parte das pessoas
acredita que nós não existimos! Ou então acreditam que nós somente fazemos o
mal!
_ Você tem razão. Pelo que estou começando a entender
do mundo “sobrenatural”, existem pessoas que se dizem normais e têm um comportamento
muito mais monstruoso do que criaturas sobrenaturais.
Ele girou os olhos.
_ Eu já falei que não existe nada de sobrenatural.
_ Ah! Mas você não vai querer me convencer que somos,
tipo, pessoas iguais as outras! Não me venha com essa agora!
_ Olhe... _ Erick começou...
_ Erick, desculpe, eu já tive emoções demais para uma
noite só e ainda existe muita coisa sem explicação. Vou para o meu quarto
agora._ e, dizendo isso, me afastei.
Quando eu entrei no grande salão onde todos estavam
reunidos, mamãe e papai me olharam interrogativamente.
_ Será que haveria algum mal se eu fosse para o meu
quarto agora? _ eu fiz essa pergunta numa atitude de respeito para com aquelas
pessoas que vieram sei lá de onde somente por minha causa. Será que não seria deselegante?
Ambrosina se adiantou:
_ Vá minha querida! Você passou por muitas emoções
hoje. Amanhã nós continuaremos a conversar sobre as outras coisas que você
precisa saber. _ ela me deu um beijo na testa e eu fui beijar minha mãe e meu
pai. Quanto ao resto das pessoas, eu apenas acenei com a mão.
O meu quarto parecia o lugar mais aconchegante do
mundo nessa noite. O carpete rosado abafava meus passos. Lentamente, eu fui
desmanchando meu cabelo e tirando as luvas, desabotoando o vestido que caiu
pesadamente no chão e me enfiei na minha malha de dormir. Eu havia separado uma
camisola nova para comemorar meus dezesseis anos, mas, àquela hora, meu velho e
confortável pijama era meu único elo com minha antiga vida.
Eu me deitei somente para sentir o aconchego da minha
cama, porque eu tinha certeza que não iria dormir! Aquela cama branca com
detalhes desenhados era aonde eu dormia desde a infância, quando eu sonhava que
era uma princesa de contos de fada. Eu soltei uma risada rouca. Princesa,
certamente eu não era, mas, jamais imaginei que eu pudesse ser uma bruxa.
O que seria de
mim agora? Meu Deus, eu era uma aberração! Por mais que Erick tentasse fazer
tudo parecer normal, EU não me sentia normal! E se eu atingisse alguém sem
querer? Sissi, Bernardo... Eu teria que me afastar deles... Eu já sou muito
desastrada sem ter poder nenhum para dominar, imagine agora, com poderes de
bruxa? Posso machucá-los, colocá-los em risco... Erick falou que eu preciso de
proteção por causa de uma profecia, isso significa que eu vou ter que manter
meus amigos afastados se eu quiser vê-los longe de encrencas.
Comecei a chorar baixinho! Não era justo! Como seria
com Bernardo? E Sissi? Eu teria que me afastar da minha melhor amiga também,
para o seu próprio bem. E se ela e Bernardo descobrissem a verdade sobre mim?
Nenhum dos dois iria querer me ver nunca mais, teriam medo de mim, se
afastariam...
Eu não vou suportar isso! Eu não vou suportar Bernardo
dizendo que não me quer mais porque EU NÃO sou NORMAL. Eu não vou aguentar
Sissi me dizendo que não pode mais ser minha amiga porque ela não poderia ser
amiga de uma... Bruxa.
Teriam eles medo, se viessem a saber? Ou será que
confiariam em mim? Eu ficava tentando me colocar no lugar deles. Se Sissi me
dissesse que era uma bruxa, o que eu faria? Acho que eu não teria medo dela! E
Bernardo? Se, de repente, eu ficasse sabendo que ele era um bruxo, eu acharia curioso,
mas, tipo, não me afastaria dele...
Eu tenho certeza de que ela não seria capaz de
compreender, NINGUÉM entenderia, ninguém que eu conheço jamais esteve nessa
situação de não saber nada sobre a própria vida, de dormir como uma pessoa e no
dia seguinte descobrir que é alguém completamente diferente!
Porém, não é só o medo da reação deles que estava me obrigando
a afastá-los de mim, há aquela profecia... Parece que algo terrível me espera e
ao meu lado eles correm os mesmos riscos que eu... E o pior é que eu nem sei
que riscos são esses! Não posso deixar Bernardo e Sissi em perigo! O melhor
para eles é que eu me afaste de todos.
As lágrimas continuavam a molhar meu travesseiro...
_ Por que meu destino teria que ser esse? _ Eu falei
isso quase gritando, como se fosse uma prece! A quem? A quem eu deveria agora
dirigir uma prece? Deus continuaria gostando de mim mesmo eu sendo uma bruxa?
Eu me senti ridícula pensando assim porque eu não escolhi ser uma bruxa! Nasci
assim! E quanto a Deus? Havia um enorme nó na minha cabeça.
Como isso dói! Não tem explicação, não há como
entender!
Eu senti uma absurda saudade de Bernardo... Como eu
não conseguisse dormir, então, eu fiquei durante muito tempo olhando as
estrelas pela janela do quarto.
_ Deus, por
favor, me ajude! _ eu solucei amargamente.
E se eu não quisesse ser bruxa? Suponhamos que eu
desistisse de tudo e devolvesse esse poder, pois, se eu vivi até hoje sem ele,
eu posso viver o resto da minha vida do mesmo jeito! Mas, ainda que eu achasse
essa ideia muito boa, eu tinha dúvidas de que fosse possível. Ainda chorando,
eu deixei meus pensamentos vagarem e devo ter dormido porque, quando abri os
olhos, a claridade do sol já entrava no meu quarto.
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