quarta-feira, 12 de junho de 2013

OUTONO - 1º CAPÍTULO


OUTONO



Valéria Schmitt










OUTONO
           Valéria Schmitt
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Obra registrada na Biblioteca Nacional-2008
1ª Edição
CAPA- Foto publicada em caixadeimagens.blogspot.com.br









DEDICATÓRIA


Aos meus filhos, Raphael e Lucas, foram suas aventuras que me inspiraram.



PREFÁCIO

Carolina Jardim é uma adolescente que está feliz com sua pacata vida e não entende porque sua mãe insiste tanto em comemorar seus dezesseis anos em alto estilo, embora não negue que a notícia da festa tenha aumentado sua popularidade na escola e feito com que ela começasse a namorar o garoto com o qual havia sonhado durante toda a sua vida.
Na festa de comemoração dos seus dezesseis anos, Carol conheceu Erick Tatcher, o enigmático filho do lindíssimo casal de amigos de seus pais e a venerável Ambrosina.
Após a meia-noite, a revelação: São todos bruxos! Carol também é uma bruxa de imensurável poder que tem a missão de proteger toda a comunidade bruxa!
Dividida entre dois amores, protegida todo o tempo pelo estonteante e misterioso Erick, perseguida de morte por Hipollitus, um bruxo que é capaz de tudo para conseguir o PODER, conseguirá Carol sobreviver e proteger os bruxos que dependem dela?






CAPÍTULO 1
Surpresas nem sempre são agradáveis

Não existe nada pior do que você dormir achando que é uma pessoa e, no dia seguinte, descobrir que é outra beeeem diferente. Se você nunca passou por essa experiência, se ajoelhe em três baguinhos de milho e agradeça a Deus por isso, porque não é nem um pouco agradável.
E mais: Se alguma vez você começar a perceber que coisas estranhas acontecem quando você está presente, ignore, faça de conta que não está nem aí. É a melhor solução, porque se você começar a se preocupar, você vai acabar se metendo em mais encrencas, podendo até descobrir coisas que não quer. Foi assim comigo...
Aquele havia sido um dia comum na escola… As mesmas aulas de todos os dias, Leandro e Gustavo fazendo gracinhas, a professora de História irritada, Bernardo me ignorando completamente e Sissi, minha melhor amiga, me dizendo para resolver a minha situação de amor platônico: _ “Declare-se ou esqueça-o”! _ (como se fosse fácil).
Eu continuava inconformada com minha aparência e pensava que, com quase dezesseis anos eu deveria ter um pouco mais de busto, pernas que não me fizessem parecer uma cegonha, pés menores e cabelos lisos e loiros como os de Clara (os meus não são lisos nem anelados e são de um castanho bastante comum). Tudo bem, não era imprescindível que meus cabelos fossem lisos, eu também ficaria feliz se tivesse os cachos que caem pelas costas de Sílvia, mas, eu gostaria muito de ser um pouco mais loira... Natural.
Ah! Ainda não falei do meu nariz, que tem a base muito larga, além de ser arrebitado, fazendo lembrar um cachorrinho pequinês, tudo isso sem contar os óculos de horríveis aros de tartaruga que me fazem ficar com aqueeela cara de arrogante intelectual, como se eu fosse a versão feminina do Harry Potter. Augh!
Somente Sissi parecia não se importar com o fato de eu não participar dos teatros e apresentações de danças da escola, ser péssima no vôlei e não saber fazer mais nada a não ser desenhar caricaturas engraçadas.
Tá bom, sou boa em Biologia e Português. Ah! E também corro muito (o que faz com que o professor de Educação Física fique todo o tempo me chamando para participar das competições de corrida por causa do tamanho das minhas pernas), mas, tudo isso nunca fez com que eu ficasse mais popular na escola... É tudo tão difícil, parece que eu não me encaixo em lugar nenhum, é como se eu fosse apenas mais um carneirinho sem graça no meio de um rebanho enorme. Além do mais, eu nunca aceitei o convite do professor, porque eu faço de tudo para ficar invisível, mesmo estando na turma do segundo ano do ensino médio e sendo quase uma formanda.
Depois de ter passado toda aula de Inglês contando as bolinhas da blusa da professora, eu saí correndo da sala assim que fomos dispensados. Naquele dia nós havíamos tido aula também à tarde e eu estava inquieta com alguma coisa que não sabia o quê. Não esperei Sissi, embora nem eu mesma tivesse entendido o motivo.
À medida que fui andando eu fui sentindo uma coisa esquisita, como um hálito gelado soprando na minha nuca. Aquela sensação me deu arrepios de pavor. Dobrei apressadamente a esquina logo abaixo da escola particular ainda sentindo o frio gélido nas minhas costas e, também não sei por que, passei por dentro do jardim no centro da cidade, coisa que nunca faço, quase tropeçando em duas crianças que andavam de bicicleta quando fui correndo em direção à pequena curva onde, anos atrás, os namorados passeavam à noitinha. Eu queria ficar sozinha.
Eu me sentei no cantinho, bem escondida e fiquei olhando para o coreto construído há mais ou menos seis anos, uma réplica do antigo coreto da pracinha. A sensação gelada na minha nuca havia desaparecido. Antes do coreto, quando eu era criança, havia um aquário vazio lá, no mesmo lugar. Aliás, eu não sei por que não fazem a pracinha voltar a ser como era antes. Já que recolocaram o coreto, poderiam reconstruí-la nos moldes antigos também. Pelas fotos da cidade antiga que ficam expostas em alguns lugares dá pra ver que ela era bem mais bonita do que hoje.
Minhas conjecturas sobre a pracinha não duraram muito. Eu voltei a me sentir inquieta, perturbada com alguma coisa que eu não conseguia identificar. Estranhando o meu comportamento, eu me forcei a sentar em um dos bancos que margeavam a praça. Mal havia acabado de me sentar, um, dois, três, quatro, e, logo em seguida, duas dezenas de pombos se aglomeraram ao meu redor. Eu busquei restos de biscoito dentro da minha mochila e os triturei nos dedos, distribuindo a farinha entre os pombos.
Senti novamente o frio na nuca... Dessa vez foi pior, como se mãos geladas me envolvessem num abraço de morte. Meu Deus! O que seria isso?
Aparentemente não havia motivos para a minha inquietação e eu estava tentando me convencer disso. Estava claro que nada de ruim iria acontecer, mas, então, porque aquela sensação de que eu estava perdendo alguma coisa de muito importante? Essa era uma das coisas estranhas que aconteciam comigo. Tipo, como quando eu ficava sozinha em meu quarto, deitada na cama perdida em devaneios, eu imaginava uma cena, coisas sem sentido que eu sabia que não haviam acontecido e poucos dias depois eu via aquela coisa acontecer exatamente como eu havia imaginado.
Outra coisa estranha acontecia quando eu ficava brava com alguém: Inevitavelmente alguma coisa muito ruim acontecia com essa pessoa. Não que eu fizesse questão disso, mas, acontecia. Bem, se eu for começar a contar todas as coisas estranhas que acontecem comigo, eu não vou conseguir parar.
Eu vesti meu casaco por causa do frio súbito e, ainda tentando me convencer de que nada de ruim iria acontecer naquele dia, tentei caminhar tranquila até chegar a minha casa, não por que não tivesse deveres a fazer, mas, para tentar me acalmar, aproveitando o delicioso ar de fim de tarde daquele dia.
_ Oi mãe!_ Eu disse mecanicamente enquanto empurrava minha mochila para um canto e tirava os tênis, me jogando no sofá da sala.
_ Carolina! Quantas vezes eu preciso falar que você não deve tirar seus tênis no meio da sala? E que mochila de escola não se joga em um canto qualquer da casa? Por que será que eu tenho a impressão de que falo com as paredes e não com a minha filha? _ eu havia me esquecido que minha mãe preza muito essa questão de educação. Sua polidez é requintada, chegando às raias do exagero! Mamãe chegava ao cúmulo de dizer que sair à rua de cabelo molhado era falta de educação, pode isso? Eu demorei muito a me adaptar na escola, porque, embora as meninas e meninos de lá fossem bem educados, ninguém era tããão exageradamente educado quanto eu e, então, eu acabava ficando meio destoada naquele meio.
Minha mãe tem o gênio completamente diferente do meu, ela é risonha e tagarela, animada com festas e reuniões, ao passo que eu herdei o jeito reservado de meu pai, o que, definitivamente, não ajudava em nada a minha falta de popularidade.
Enquanto ela continuava a falar sobre não jogar os tênis e a mochila pela casa e sobre normas de boa educação, eu olhei para ela com aquela cara de “sermão de novo?” e continuei sentada no mesmo lugar. Parecia que eu não iria sair de lá nunca quando uma palavra dela me fez dar um salto. “FESTA”? Eu havia ouvido a palavra festa? Comecei a prestar um pouco mais de atenção na sua fala tresloucada:
_... Já fiz uma lista de todas as famílias que não podemos deixar de convidar e também dos parentes mais velhos, aqueles que a viram somente quando você era apenas um bebê: Tia Rovena, tio George, tia Samanta...
_ Mãe! _gritei _Você não pode estar falando sério! Caraca! Que festa é essa?_ eu sabia que alguma coisa de muito ruim estava para acontecer.
_ A comemoração de seus dezesseis anos, é óbvio! O que mais poderia ser? E não fale gírias, minha filha, por favor, não é apropriado.
_ Não! Não, não, não, ene-a-ó-til, viu mãe? Não quero festa nenhuma, pô! _ eu disse, andando de um lado para o outro e ignorando a última parte da sua fala.
_ Mas, filha _ ela parou na minha frente segurando os meus tênis em uma das mãos e a minha mochila na outra _ é absolutamente importante que você tenha essa comemoração dos seus dezesseis anos!
O que poderia haver de tão interessante em alguém completar dezesseis anos? Exceto por me ser permitido votar, eu não via nada de diferente em fazer dezesseis anos. Eu até ficaria muito feliz em poder votar dali em diante, mas eu não queria uma festa!
Além do mais, a idade em que normalmente se faz uma grande festa é quando se completa quinze anos e não dezesseis! Todas as minhas colegas de escola tiveram uma “festa de quinze”! Somente os meus quinze anos não foram comemorados porque meus pais foram inexplicavelmente categóricos ao me negarem uma festa de debutante. Na verdade, eu não fazia muita questão, apenas acho que ficou muito estranho somente eu não ter uma festa de debutante na minha classe. Talvez agora eles estivessem querendo se redimir comigo ao fazer essa festa de dezesseis, só que eu não queria nada disso!  Minha mãe continuou a falar desesperadamente:
_ É imprescindível que façamos uma festa! Convidaremos todos os seus colegas de escola, naturalmente, e também seus amigos de infância, vizinhos... Ah! Será uma festa memorável! _ Oh! Não! Ela estava com aqueles olhos sonhadores que me faziam tremer. Isso significava que ela não iria desistir!
_Mãe! Olha só... _ eu disse pausadamente, olhando-a nas profundezas dos seus olhos azuis-violeta, numa tentativa desesperada de parecer calma, sem, no entanto, obter nenhum sucesso _ Eu não quero festa alguma! Eu NÃO PRECISO DE FESTA! Eu não quero meus colegas de escola aqui em casa e muito menos parentes que não conheço comemorando meu aniversário! _ mas mamãe não me ouviu, antes que eu acabasse de falar, ela já havia subido para o andar de cima com minha mochila e meus tênis.
Passei as mãos nervosamente pelos cabelos.  Ah! Não! Isso não podia estar acontecendo! Eu preferiria mil vezes ser engolida por um algodão-doce gigante! Imaginei Bernardo recusando educadamente o meu convite, Clara dizendo que sentia muito, mas, tinha marcado outro compromisso e Sílvia sacudindo seu cabelo cacheado e falando que ia passar o fim de semana fora, enquanto aqui em casa viria um bando de parentes que nunca ligaram para mim para comer salgados finos juntamente com Sissi, que era a única que não iria faltar para comemorar comigo os meus solitários dezesseis anos.
_ Todos os seus colegas estão recebendo convites exatamente nessa mesma hora! _ mamãe reapareceu, descendo as escadas.
_ “Não!” _ pensei mais uma vez. _ “Onde está o algodão-doce gigante? E como todos estavam recebendo os convites nessa mesma hora?” _ Estava claro que aquilo era somente um jogo de palavras...
_ E, para que não tenhamos surpresas, os convites estão com R.S.V.P. _ minha agitada mãezinha andava de um lado para o outro, mexendo nas flores em cima da mesa de centro.
Ah! Não! Ela ainda me fez pagar o mico de colocar um "respondez s’il vous plait" nos convites do meu aniversário! O que o pessoal da escola vai pensar? Tipo, que eu sou esnobe ou coisa assim?
Eu não sabia mais o que fazer. Minha mãe tinha o péssimo hábito de sempre conseguir o que queria! Ela era incansável e esse era o seu mais novo objetivo. Ela usava todos os artifícios, bem como seu charme e carisma para conseguir tudo o que queria de todos, incluindo a mim e a meu pai.
A campainha tocou e, como se fosse mágica, dezenas de mensageiros chegaram a um mesmo momento na porta de minha casa. Minha mãe estava eufórica:
_Veja! Todos aceitaram nosso convite! Até Bernardo, aquele bonitão que joga futebol, confirmou sua presença!
Caraca! Ela conseguiu de novo!
_ Você disse B-Bernardo? Ele vem?
_ Meu amorzinho! Quem deixaria de vir à festa da menina mais popular da escola? _ ela me deu um beijo na testa, fazendo com que eu me sentisse ridícula.
“Minha mãe pirou! Eu, popular?” pensei.
_Oh! Sílvia, Clara, Sissi, Leandro, Gustavo, Tia Rovena, tio George, tia Samanta... Todos virão! Que ótimo! _ mamãe parecia uma criança abrindo seus presentes na manhã de natal. Não imagino o que ela fez para conseguir isso...
Eu não estava entendendo mais nada! Em primeiro lugar, TODAS as pessoas receberam o convite ao mesmo tempo, depois, TODOS responderam à mesma hora. Mamãe conseguiu que a menina mais bonita da classe concordasse em vir a minha festa e até mesmo Bernardo, que mal me vê na escola, aceitou seu convite! Inacreditável! E aqueles parentes que eu nunca soube que existiam? O que esse pessoal vinha fazer na minha festa? Nunca ligaram para mim, nunca me fizeram nem uma só visita!
Escutei o toque de meu celular e vi a foto de Sissi piscando no visor do aparelho.
_Alô! _ atendi com voz desanimada, enquanto meu gato Puff se enroscava nas minhas pernas.
_ Carol, como conseguiu esconder isso de mim?
_ Hã? Não sei do que você está falando.
_ Ah! Conta outra!  Tô falando da sua festa! Aquele convite liiiindo! E com um show do Poeira na Estrada!
_Quê? _ “Poeira na Estrada?!?! O que a banda mais famosa do momento iria fazer na minha festa de aniversário?” _ pensei.
_ Alôôô!
_Tô aqui, Sissi, mas, juro que eu não sabia de nada. Minha mãe acabou de me contar sobre a festa. Eu não queria isso e não teria deixado acontecer se tivesse ficado sabendo antes!
_ Que bobagem! A cidade inteira só fala nisso!
Então era verdade que TODOS haviam recebido os convites ao mesmo tempo. E, numa cidade do tamanho de Pitangui, o assunto do momento deveria estar sendo minha festa de aniversário. Poeira na Estrada? De onde minha querida e maluca mãe tirou isso? Meu desespero aumentou. De nada adiantaria esperar meu pai chegar porque ele sempre se rendia aos desejos de mamãe e, no momento, seu principal capricho parecia ser a minha festa de aniversário!
_ Alô-ow!
_ Fala. _ eu estava atordoada!
_ COMO sua mãe conseguiu uma apresentação do Poeira em SUA festa de dezesseis anos?
_ Hã!... Tipo, acho que meu pai conhece o pai deles..._ eu disse, esperando que a desculpa fosse convincente, pois, eu NÃO FAZIA a menor ideia de COMO mamãe havia conseguido isso.
_ Peraí! E você NUNCA me contou isso?
_ Hã!... Eu não sabia...
_ Ah! Pra cima de mim, Carolina! O que você queria era me manter longe para eu não ficar pedindo autógrafo ou foto deles pra você! Jamais pensei que você fosse tão egoísta! Tchau!
Ela desligou o telefone! Sissi estava bravíssima comigo por causa de uma coisa que eu sequer sabia! Eu desliguei também e fiquei bastante chateada. Pôxa! Além de ter que engolir uma festa que eu não queria e ter que aguentar ser o centro das atenções (coisa que eu detesto), agora minha melhor amiga estava com raiva de mim!
Passei o restante da tarde ouvindo música no meu i-pod, olhando para as paredes cor de rosa do meu quarto. Não quis jantar, o que fez minha mãe ter um chilique:
_ Você vai acabar doente, na sua idade não se deve ficar sem comer, você vai parar de crescer (Ah! Isso era tudo o que eu queria), vai ficar com anemia, raquítica, magra e sem graça. _ e mais outras coisas que eu não fiz questão de escutar.
Mesmo com todo aquele discurso, dessa vez ela não conseguiu me vencer e eu fiquei um longo tempo olhando a noite pela grande janela pintada de branco, de onde pendiam cortinas transparentes com bordados delicados. Papai bateu na porta do meu quarto, mas, foi sensível o suficiente para ver que eu não queria conversar e desistiu, uma coisa que seria completamente impossível para minha mãe.
 Meu pai, Albano Jardim, é médico em Pitangui e, apesar de não ter nascido aqui, é uma pessoa bastante querida por todos por ser muito caridoso e cuidadoso com seus pacientes. Para ele nunca existiram pobres ou ricos, ele enxergava apenas uma pessoa enferma precisando de sua ajuda. Se os doentes podiam ou não pagar por seus serviços, isso não importava a meu pai, o que interessava era a sua cura.
Minha mãe, Beatriz Couto Jardim, também se tornou uma pessoa muito querida na cidade desde que se mudou com a família para cá quando eu ainda era um bebê. Foi essa razão pela qual eu não fiquei espantada que todos os convidados aceitassem comparecer à minha festa. Ela é uma mulher bonita, daquelas que aparentam idade indefinida. Olhos violeta, pele clara naturalmente rosada nas faces e cabelos louros, mantidos impecavelmente cortados à altura dos ombros por Jacó, seu cabeleireiro preferido.
Meus pais se mudaram para Pitangui quando eu nasci, atraídos pela beleza das montanhas e pelo ar puro da cidade que respira história, afinal, foi aqui que, entre 1713 e 1720 aconteceram as primeiras revoltas da colônia do Brasil contra as imposições da Coroa Portuguesa. Cidade de povo bravo e corajoso, desde o tempo da revolta contra o pagamento do Quinto do Ouro quando se apregoava que “quem pagasse, morreria!” e centenas de moradores morreram tendo sido chacinados pelos Dragões da Coroa de Portugal, que quiseram, inclusive, acabar com a Vila, incendiando-a. Nessa época, o Conde de Assumar, governador da província das Minas Gerais, já falava sobre os habitantes de Pitangui, se referindo a eles como “gente intratável”. O espírito guerreiro desse povo passou de geração em geração e permanece até hoje.
Nada disso, porém, fazia sentido diante do imenso problema que eu tinha diante de mim: O que seria de mim dali pra frente?? Nunca fui muito expansiva, nunca tive uma roda grande de amigos, nunca fui boa em esportes, dança ou teatro... Sempre procurei ficar meio oculta quando papai saía com mamãe para a Igreja ou para algum evento na cidade.
Eu devia meus olhos cor de mel, que, de vez em quando ficavam verde-escuros, à mistura dos olhos azuis de mamãe com os olhos castanhos de papai. Meu pai poderia passar despercebido, mais ou menos um rosto comum, com olhos e cabelos castanhos, mas, ele tem um inexplicável magnetismo no olhar e isso faz dele um homem encantador! Não consigo me lembrar de alguém que tenha resistido quando meu pai pede alguma coisa ou quer convencer qualquer pessoa.
Infelizmente, não herdei o magnetismo de meu pai, nem os olhos azuis e os cabelos loiros de minha mãe. Meu nariz é arrebitado como o dela, mas, tem a base larga e deselegante, enquanto o dela é fino e delicado.  Acho que, definitivamente, em minha aparência eu não consegui reunir o melhor dos dois lados! Augh!
Como eu já disse, eu nunca fui uma garota popular nem na escola, nem em lugar nenhum, embora meus pais fossem bem articulados e nós morássemos em uma bela casa com jardim. Talvez meu temperamento introspectivo fosse uma das razões dessa impopularidade ou talvez isso se devesse ao fato de que, apesar da minha educação esmerada, minha família não era tradicional na cidade, não sei. Meus pais não eram nascidos aqui e eram muito bem aceitos, mas, isso era outra história. E talvez a razão da minha impopularidade fosse justamente essa minha educação esmeradíssima. Vai saber!
Demorei a dormir, preocupada com o dia seguinte. Deu uma vontade enorme de faltar de aula, mas, não daria para fugir para sempre. Uma hora eu iria ter que enfrentar a situação, então, que fosse logo! E eu teria que resolver aquela pendência com Sissi também. Teria que explicar a inexplicável história do show do Poeira!
A escola estava reformulando seus uniformes, então, estava sendo permitido usar roupas comuns até que chegassem os novos. Coloquei uma calça bege e uma blusa do mesmo tom porque essa cor me faz ficar invisível (o tom bege não combina com a minha pele, ficando tudo igual, eu e a roupa de uma cor só) e resisti à tentação de colocar uma fita nos cabelos.  Escovei os dentes rapidamente, peguei a mochila e saí sem tomar café da manhã.
Ao chegar à escola quase tive um desmaio! Uma multidão se aglomerou à minha volta, falando sobre a festa e sobre o show. Clara me deixou de queixo caído quando me convidou:
_ Sabe, eu estava pensando, nós temos um uniforme de torcida que cabe em você... O que você acha de participar do treinamento para o jogo do Torneio de Inverno de depois de amanhã? _ Clara era a menina mais bonita da escola. Ela era meio impressionada com os Estados Unidos, então, havia organizado uma torcida uniformizada como aquelas que existiam nas escolas de lá para torcer nos campeonatos estudantis.  Ela se intitulava “Chefe da Torcida”, e, embora aqui no Brasil esse título não significasse grande coisa, parecia que estava dando certo, pois, todas as meninas se candidataram a uma vaga na torcida. Bem, todas, menos eu, é óbvio!
Então Clara estava me convidando para participar da torcida?
“Não sei não.” _ pensei _ “Será que eu ficaria bem com aquela roupa?”.
 Eu achava que minhas pernas eram muito compridas para usar a minissaia branca plissada do uniforme e nem sabia se o verde da blusa assentava com a minha pele.
_ Eu quero agradecer muito pelo convite para a sua festa. _ era Sílvia que falava, balançando seus cachos.
_ Imagina! Foi um prazer _ menti.
_ Menina, queííísso! Ficar frente a frente com o pessoal do Poeira é o quiá! _ Sílvia tinha um delicioso sotaque do interior de Minas, que estava mais acentuado agora por causa da excitação.
Até Leandro e Gustavo pareciam estar fazendo menos palhaçadas naquele dia e Bernardo passou por mim e disse: _ “Oi!” _ piscando um olho! Ah! Ele era lindo! Alto, loiro, olhos cinzentos como um céu tempestuoso, rosto tipicamente nórdico, corpo atlético forte e delgado.
“Eu tô pirando ou o quê?” pensei.
Somente Sissi se manteve à distância. Tentei falar com ela, mas ela disse que eu estava ocupada “demais da conta” com meus novos amigos para precisar de sua atenção. No recreio, parecia que toda a escola disputava um lugar ao meu lado e depois da aula eu acabei indo ao treino da torcida, empurrada por Clara e suas companheiras.
Não tive mais oportunidade de conversar com Sissi até chegar ao meu quarto, quando tentei falar com ela pelo celular. Ela não me atendeu. Eu também tentei fazer as lições de casa, mas, estava perturbada demais para conseguir me concentrar em qualquer coisa.
Liguei o computador e fiquei olhando as fotos que havia colocado no meu Facebook. Havia uma foto minha e de Sissi onde eu escrevi: “Eu e minha melhor amiga”. Em outras fotos de Sissi havia sempre a mesma legenda “minha melhor amiga”. Melhor amiga! Quem diria que “a melhor amiga” iria deixar de falar comigo por causa de uma bobagem! É verdade que eu estava bem chateada com ela porque nós éramos amigas mesmo, do coração. Foi no ombro dela que eu chorei quando vi o Bernardo namorando pela primeira vez e foi pra minha casa que ela fugiu quando descobriu que sua mãe estava namorando o filho do gerente do banco, dez anos mais novo.
Enchi a banheira com espuma de sabão e demorei muito tempo no banho. Lavei meus cabelos e os sequei ao secador apenas para ter mais coisas a fazer. Saí para dar uma volta, mas, estava muito frio lá fora, apesar de ainda ser outono! Em Pitangui, como em todo o Brasil, o tempo era caprichoso, podia fazer muito frio no outono e quase nenhum frio no inverno. Naquele dia em especial, o dia estava combinando com a pequena cidade de quase trezentos anos e casas em estilo colonial, incrustada nas montanhas de Minas Gerais. Eu gostava muito de morar aqui, muitas vezes eu saía de casa somente para andar na rua e ficar olhando os prédios. Em Pitangui há capelas, Igrejas e casarões históricos, minas de ouro a céu aberto, matas, enfim, é a cidade perfeita para se morar e se visitar. Eu poderia me transportar no tempo e imaginar que estava no século XVIII, mas, meu estado de espírito não estava colaborando.
A noite não chegava e eu já não sabia mais o que fazer para passar o tempo. Tentei assistir a um filme, mas, também não me concentrei.
Enfim, a noite chegou e eu fui me deitar, torcendo para que o sono viesse depressa.
O dia seguinte na escola foi pior ainda que o anterior. Eu parecia uma celebridade (ai, que horrível!), Clara me chamou para ir com ela a uma boutique para dar uns pitacos na escolha da roupa que ela queria comprar para a festa. Como a dona de lá é amiga de minha mãe, eu concordei. Sílvia também iria, é claro e também Cláudia, Marina e Sara... Formaríamos um formidável grupo de compras.
Convidei Sissi para ir conosco comprar roupas e ela disse apenas: _ “Não, obrigada, flor! Você já tem abelhas demaaais da conta te rodeando!” _ me deixando claramente magoada. Ela me chamou de flor! Isso já estava ficando insuportável!
Tivemos novo treino da torcida e eu procurei ficar bem atrás, ainda que a coreografia não fosse assim tão difícil. O jogo seria no dia seguinte e eu vi que Bernardo observava-nos furtivamente durante todo o ensaio. Como jamais havia participado de treinos antes, a não ser no dia anterior, não sabia se ele costumava observar alguém que lhe interessasse.
Entrei em casa ruidosamente, batendo a porta sem querer o que fez com que minha mãe percebesse minha chegada. Ugh!
_ Querida! Você está aqui. _ ela veio correndo com um folder nas mãos _ Veja o Buffet que encomendei para a festa. Ah! A mãe de Clara me telefonou e disse que vocês vão sair para comprar roupas, isso é muito bom, você e Clara precisam ser mais amigas. Seu vestido da festa já está encomendado, mas, quero que você compre uma roupa pra você também. Escolha uma que te deixe bem bonita! _ e saiu logo depois de me dar um beijo na testa, mal imaginando a confusão que ela havia armado na minha pacata vida.
Eu passei o resto do dia no meu quarto com a porta trancada e Puff deitado preguiçosamente no meu colo. Parecia que somente ele me entendia. Ao menos ele me dava carinho e não exigia que eu lhe explicasse o inexplicável. Novamente eu não quis jantar e a cena se repetiu, pois, mamãe não se conformava com a minha falta de apetite.
À noite, como no dia anterior, o sono demorou a vir. Minha vida, antes tão tranquila, havia virado de ponta-cabeça! Mesmo não gostando do meu nariz, mesmo sem ser popular na escola, mesmo sem ter a atenção de Bernardo (não sei ainda se aquela atenção era para mim, mas, ele me viu treinando), eu era mais feliz antes...
Está claro que eu tinha somente Sissi como amiga, mas, era uma amiga leal, bom, pelo menos eu achava que ela o era, não sei se uma amiga leal me abandonaria como ela estava me abandonando. Eu gemi, chamando a atenção de Puff. Não sabia nem se ela viria à minha festa! E Sissi nunca precisou ficar só comigo na escola como ela ficava, ela é uma garota brilhante, de olhos verdes e cabelos castanhos bem escuros, quase negros, que formam um interessante contraste com sua pele cor de mel. Eu sou diferente, nunca tive a pele como a dela _ a minha cor é uma mistura da pele clara de mamãe com a pele mais morena de papai _ e ainda por cima uso óculos, sou tímida até morrer e não me considero nem um pouco bonita. Eu gemi de novo e Puff ronronou no meu ombro.
De nada adiantaria conversar com minha tresloucada mãezinha, ela estava animada demais com a festa, jamais me ouviria. Além do mais, creio que não daria mais tempo para voltar atrás.
Foi somente ao ouvir o som irritante do despertador que percebi que havia conseguido o improvável, dormir. Era o dia do jogo da minha classe, então, eu pulei da cama, tomei uma ducha rápida, amarrei um laço de fita verde nos cabelos e engoli meia tigela de granola com iogurte. Eu sabia que estava querendo chegar logo ao Poliesportivo para ver Bernardo jogar.
Caminhei depressa para chegar logo ao Poli. Eu estava um pouco enjoada, talvez pela ansiedade de participar da torcida... Ao chegar, toda a turma, à exceção de Sissi, estava à minha espera. Isso estava se tornando um péssimo hábito! Não havia um lugar que eu pudesse ir sem que um cortejo me acompanhasse.
O jogo parecia não começar nunca. As pessoas estavam se aglomerando nas arquibancadas e Clara ficava o tempo todo em frente ao espelho ajeitando seu uniforme.
_ Pára de ficar se olhando no espelho, Clara, cê já tá bem bonita. _ Silvia brincou com aquele inconfundível sotaque mineiro.
_ Eu hoje tô naqueles dias de me olhar no espelho e me sentir horrorosa. Vocês nunca sentiram isso não, gente?
Houve um murmúrio de “não, queííísso! Você tá liiiiinda!”, que foi interrompido por Cláudia:
_ Peraí. _ ela começou. _ É normal a gente se sentir assim de vez em quando, né Carol?
A pergunta me pegou de surpresa:
_ Hã! Tipo assim, eu sempre me sinto horrível quando me olho no espelho._ eu respondi encabulada.
O que eu ouvi em seguida foi uma chuva de “Ohs!” e “Nããão! Você é tão bonita, queísso!” de todas as meninas querendo me consolar de alguma forma. Escutamos a voz do professor de Educação Física nos chamando e saímos correndo do vestiário em direção à nossa posição na quadra. Começamos a nossa coreografia. Isso era meio engraçado porque não era comum em nossa cidade, acho que até nas cidades maiores também não. Não faz parte da nossa cultura, por isso, os meninos nos olhavam com curiosidade antes do começo de jogo.
 Nossa classe estava disputando Futsal e, quando o jogo começou, logo no início, o nosso time já saiu fazendo o primeiro gol, devendo essa vantagem em grande parte à perícia com que Bernardo jogava! A torcida dançava, animada, de vez em quando recebendo alguns olhares dos jogadores.
Bernardo estava com a bola, incrivelmente bonito em seu uniforme. Leandro correu para o seu lado e recebeu a bola, estávamos com uma pequena vantagem. Bernardo pegou novamente a bola e chutou. Mais um gol para nós. Começamos a dançar novamente, incentivando o time.
Do meio do jogo em diante, porém, o outro time começou a ter mais o domínio da bola e empatou o placar, fazendo 2x2. O jogo já estava no final, o placar estava empatado e tudo dependia de uma jogada só. Gustavo chutou para Bernardo que correu com a bola nos pés em direção ao gol. Não havia marcação nenhuma em cima dele e o pessoal nas arquibancadas foi ao delírio. No entanto, o inimaginável aconteceu: Sem que ninguém pudesse explicar como, ele caiu pesadamente no chão e ficou sentado olhando a bola passar por ele.
 Houve um silêncio mortal. Parecia que até o ar estava parado. Eu nunca vou saber direito o que ocorreu naquela hora, a única coisa que sei é que eu olhei para a bola, desejando desesperadamente que ela parasse a fim de que Bernardo se levantasse e corresse até ela. O que aconteceu a seguir foi assombroso: A bola saiu do chão e ficou parada no ar, como se, por vontade própria, estivesse esperando que Bernardo se levantasse e a mandasse para o gol. O mais impressionante disso tudo é que nenhum dos jogadores do time adversário se mexeu, era como se todos estivessem paralisados. Nos minutos que se seguiram até Bernardo se levantar do chão eu senti como se o tempo tivesse parado. O público no Poliesportivo veio abaixo quando Bernardo se levantou com um salto e deu uma cabeçada na bola, marcando um estupendo gol de cabeça e dando a vitória para o nosso time.
O interessante é que ninguém parecia ter percebido o que havia acontecido. As meninas da torcida ficaram impressionadas com a rapidez com que Bernardo se levantou e alguém chegou a comentar que ele não havia caído, mas, ninguém falava sobre a bola parada no ar e nem sobre os jogadores paralisados em campo, era como se isso não tivesse acontecido. Eu nunca conseguiria explicar aquele estranho fenômeno, inédito num jogo de futebol, só sei que, dessa forma, Bernardo se tornou o grande herói do dia.
Quando o placar marcou o gol para o nosso time e soou o apito final, eu quase desmaiei: Bernardo saiu correndo de onde estava e me pegou pela cintura rodopiando comigo pela quadra afora! Era como se ele soubesse o quanto eu havia desejado que aquilo acontecesse, pior, como se ele me responsabilizasse pelo que houve com a bola, mas, com toda certeza, eu não tinha nada a ver com aquilo! Ou será que tinha? Afinal, eu havia desejado tanto! Mas, não! É claro que eu não conseguiria fazer uma bola parar no ar, tinha graça!
 Quando, enfim, Bernardo me colocou no chão, ele me olhou enigmaticamente e me deu um rápido beijo nos lábios, me deixando paralisada, na tentativa de me equilibrar sobre minhas próprias pernas enquanto ele se afastava sorrindo.
Eu ainda fiquei parada, com a mão sobre os meus lábios recém-beijados. Eu nunca havia sido beijada antes e nem em meus mais audaciosos sonhos eu esperava que meu primeiro beijo, ainda que rápido, fosse dado por Bernardo, o garoto com quem eu havia sonhado tanto nos últimos quatro anos. Meu coração dava cambalhotas dentro do peito, minhas pernas pareciam gelatina, eu não conseguia sair do lugar, até que Sissi chegou perto de mim, irônica:
_ Desencanta Cinderela! Seu príncipe tá lá longe com os amigos, comemorando a vitória!
Eu não conseguia entender o porquê daquela raiva de Sissi. Será que ela acreditava mesmo naquela história que eu havia escondido tudo dela, a festa, a apresentação do Poeira e tudo o mais? Ou será que ela simplesmente não conseguia me ver feliz e estava com inveja do que estava acontecendo comigo? Será que ela nunca foi minha amiga de verdade e gostava de mim só porque eu era a única pessoa que dava atenção a ela? Ela também era a única pessoa que me dava atenção naquela época em que eu era apenas um patinho feio.
Bem, para ser sincera, patinho feio eu ainda continuava a ser, mas, agora eu era um patinho feio popular e minha popularidade não tinha nada a ver com amizade. Meus novos “amigos” não eram amigos de fato, só se aproximaram de mim por interesse! Como Sissi não percebia isso? Ela acha que eu estou deslumbrada com tudo e não quero mais saber dela? Não é nada disso, mas eu não tenho sequer como me explicar... Ela não atende aos meus telefonemas, não me permite falar quando eu chego perto e foge de mim o tempo todo!
Eu ainda estava perplexa com o que havia ocorrido durante o jogo, mas, o que mais me assustava era que ninguém parecia ter notado nada de diferente! Como explicar isso? Com os neurônios quase derretendo, eu resolvi não pensar mais naquilo e fui lanchar com Clara e as garotas, que não falavam em outra coisa, senão na esperteza de Bernardo.

2 comentários:

Samanta disse...

Amei a premissa e o primeiro capítulo! O fato de ser ambientado no Brasil faz com que a história pareça até possível, real... haha

Parabéns pela escrita e pela história! Vou correndo ler o segundo capítulo!

Beijos,

Samanta.

http://diversaoempapel.blogspot.com.br/

Valéria Schmitt disse...

Muito obrigada Samanta! Beijos!!!